CHUVA

Chove uma grossa chuva inesperada,
Que a tarde não pediu mas agradece.
Chove na rua, já de si molhada
Duma vida que é chuva e não parece.
Chove, grossa e constante,
Uma paz que há-de ser
Uma gota invisível e distante
Na janela, a escorrer…

_

▪Miguel Torga
( Portugal 🇵🇹 )

ELES DIRÃO

Da minha cidade, o pior que os homens dirão é isto:
Você tirou as crianças do sol e do orvalho,
E dos brilhos que brincavam na grama sob o grande céu,
E da chuva imprudente; você os coloca entre paredes
Para trabalhar, quebrados e sufocados, por pão e salário,
Para comerem poeira em suas gargantas e morrerem de coração vazio
Por um punhado de salário em algumas noites de sábado.

__

▪ Carl Sandburg
(Estados Unidos 🇺🇸)

REFLEXÕES

O artista lida com a beleza invisível.
O santo lida com a graça invisível.
Mas, a respeito das mães que trabalham, os artistas e os santos são apenas diletantes : nada mais essencial que servir a infância sobre a qual repousa a arquitetura de todos os mundos invisíveis.

 


▪Christian Bobin
( França 🇨🇵 )

Não preciso que me digam que é impuro o que escrevo

Não preciso que me digam que é impuro o que escrevo
vê-se pelas cicatrizes nos dedos da mão direita (a calosidade
amarelada de nicotina no dedo anelar é trabalhinho escravo)
também a espinha lixada e a falta de dentes o mostram bem
não tenho biografia não a procurem no canto mal cheiroso
no medo da noite (o catecismo não é igual para todos não é?)
a minha biografia se quiserem começa e acaba no registo civil
em mil novecentos e cinquenta e quatro também tive direito
a nascer numa geração rasca a de pais anónimos e mães solteiras
o que escrevo é impuro como os sangues menstruais e o mijo
a destilarem amoníaco a federem como as fábricas da cuf
na outra margem onde se escrevia em peles curtidas pelo silêncio
ou como o sangue coagulado dos mortos na guerra colonial
pestes é que não têm faltado na minha vida…
deambulo pelos sonhos onde me perco extenuado e amanheço
quase sucumbindo ao ar excessivo que me invade os pulmões
desremelo os olhos e a esbracejar inauguro o dia saído da noite
onde se pesca palavras e outros excrementos da alma.

 

_
▪ Carlos Alberto Machado
( Portugal 🇵🇹 )
in “ Registo Civil. Poesia Reunida”, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010

O HÓSPEDE

Perguntava-te tarde na outra noite
de onde brotam as violências do mundo
e tu abriste os teus olhos de farol em repouso
e convidaste-me a hospedar-me no teu silêncio.

Há tantas coisas, amor, que não entendi,
mas a tua hospitalidade não é uma delas.

_
▪ Juan Gabriel Vásquez
( Colômbia 🇨🇴 )
Mudado para português por Nuno Júdice

 

SHIRLEY ANN EALES

Na vitrina lê-se Livros Raros
e Usados sob o azul inclinado
de um toldo – mesmo em frente
à glacial cafetaria de franchise
onde o dia destrata o desejo
e não se pode fumar. Subo
aos pequenos gabinetes
mergulhados no doce bafio
da literatura e percorro de A
a Z as espinhas estreitas

e rachadas da poesia. É o sítio
mais vazio de Novembro
e o que mais me reconforta;
o livro que escolho, por metade
de uma libra, traz no frontispício
um nome e uma morada: Shirley Ann
Eales, de Scottsville – um sumido
autógrafo de maiúsculas magras
e triangulares onde a imaginação
encontra por enquanto pretexto

e oxigénio suficientes para arder.
O livro teve outra existência,
pertenceu a outra casa, a outra mesa
de cabeceira – e o pensamento,
de tão óbvio, conjura de repente
uma vertigem, é um corredor
abrupto para a imensidão do mundo
onde trafica o acaso. Ah, sabemos
que a vida é improvável se damos
por nós a cismar, a meio de uma tarde

insípida, numa mulher desconhecida
que lia poemas em Scottsville, nos anos
70. Mas haverá aqui alguma espécie
de sentido, algum sinal guardado
para alguém mais sábio ou inocente
do que eu? Não sei quem és
nem onde estás agora, Shirley Ann,
mas como seria belo se pudesses
um dia encontrar, por obra da mesma
sorte, o teu nome nestes versos.

_

▪ Rui Pires Cabral
( Portugal 🇵🇹 )

in ”Morada”, Assírio & Alvim, Lisboa, Fevereiro de 2015