Líquido amor

Líquido amor
meu lago de narciso
onde pra ver-me não posso penetrar
e onde penetro sempre
porque na minha imagem
destruída
talvez te encontre a ti
se tu existes

e então existiria
para o lado de lá da ironia
com que nem finjo já sequer acreditar
no que procuro
sempre
porque já sei demais que esta procura
é o seu próprio fim
para que eu teça
e seja
o falso corpo construído
verdadeiro
da minha luz perdida

se tivesse havido luz
que eu pudesse ter perdido

mas nem lagos há
onde
me olhando
eu veja a tua imagem
há o teu corpo
há o meu corpo
há esta raiva fria
que prevê
e além da roupa e do perfume
em que fingimos nossos corpos
não temos nada mais que ossos e sangue
os lagos que os rochedos separaram
pra que não possam mais que reflectir
a sua bloqueada comunhão

 

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▪ Helder Macedo
(🇿🇦 África do Sul)
in “Poemas Novos e Velhos”, Editorial Presença Lisboa, 2011